domingo, dezembro 06, 2009

Dióscoro


Os deuses me abençoaram muitíssimo. Esses deuses, a quem conheci e aos quais prestei o devido culto, por quem celebrei e ofereci as melhores oferendas, me deram tudo o que um homem poderia desejar, em abundância e ,quem sabe, em excesso. Nasci rico, multipliquei o quanto pude tudo que ganhei. Conheci o mundo. Tive desde novo as mulheres que desejei e embora não tenha levado em conta, fiz com certeza muitos filhos. Fui respeitado, temido, obedecido. Aprendi o prazer de possuir e também o de destruir. Muito pouco me faltou. Talvez isso que as almas frágeis chamam de amor, talvez isso tenha me faltado por um tempo. Isso que nunca tinha visto nos olhos das mulheres que possui, e foram muitas. Isso com o qual nunca me importei e que vi pela primeira vez nos olhos daquela maldita, minha filha, meu sangue.
A mãe dela nunca me olhou assim, e olhe que ambas tinham os mesmos olhos. Ah, a mãe dela, um dos meus maiores enganos. Uma das mulheres mais belas que conheci, um corpo saudável, puro, um rico dote, uma alma fraca, incapaz de apreciar a beleza, o prazer. O refinamento de uma escultura de mármore, a beleza das construções humanas, a alegria das festas, do sexo, do ouro. Se escondia no escuro do quarto, tinha medo do pecado , de seu Deus triste e morto. Não poderia criar os meus filhos, eu os levaria para longe dela tão logo pudesse, os educaria para serem vitoriosos e ricos, e não lamentosos e suplicantes. Levaria sim, para longe, mas não foi preciso, ela não os teve. Seu Deus não a salvou de um parto difícil, frágil Deus que era. Restou a menina. E eu poderia ter tantos filhos quisesse, procuraria uma nova esposa, encheria de crianças o castelo, tinha para isso o apoio dos deuses, deuses eficientes, fiéis aos que mantém reluzentes os seus templos, prósperos seus sacerdotes.
Foi quando a menina me olhou, a desgraçada. E eu vi nos olhos dela aquilo que eu nunca pretendi conhecer. Ela me olhou com amor, e eu compreendi em segundos o que nunca nenhum sábio conseguiu me explicar. Amor, era a razão daquele brilho maldito. Amor por mim, que nada fiz por merecer, que mal a tinha enxergado desde que nasceu. Aquela menina me olhava com amor e me chamava de pai. E eu esqueci dos filhos que teria, das esposas que deveria mandar buscar, talvez tenha esquecido dos deuses, tenha falhado em minhas obrigações. Não percebi, mas devo tê-los negligenciado. Ela ocupava todos os meus pensamentos. Por ela eu viajava, trazia os melhores presentes, as histórias mais belas. Me tornava cada vez mais rico. Para ela, só para ela. Contratei os melhores professores, não a queria tola como a mãe. Nem que aprendesse com as criadas da casa essas pieguices, crenças de ignorantes. Minha filha era bela e pura, uma rainha, uma deusa. Quem sabe foi aí que os ofendi.
E ela crescia. Crescem rápido as meninas. Seu corpo começava a tomar formas de mulher, mas seus olhos continuavam os mesmos, cheios de amor, amor por mim, seu pai. Eu tinha pesadelos. Em breve teria que dá-la a outro homem. Ele tocaria seu corpo perfeito, faria nela um filho. A idéia me deixava doente. Minha filha, meu sangue, a única mulher que me amou, não poderia ser de ninguém. Mas se até em sonhos...que homem ao olhar para ela não teria vontade de possuí-la, ainda que em sonhos. Sonhos asquerosos. E aí mandei construir a torre. Não, não era uma prisão, era um palácio e ela, rainha absoluta. E eu ,seu mais fiel súdito, voltaria para ela ao fim de cada viagem. E contaria histórias. E traria os mais ricos presentes. E riríamos juntos, celebraríamos a boa fortuna, o ouro, a beleza. Ela seria a mais feliz das mulheres, a mais amada, talvez a única verdadeiramente amada. Sim, mandei construir a torre. Estaria segura a minha menina.
Foi quando retornei, de uma das muitas viagens, sedento por seu olhar de amor, aquele olhar que tinha se tornado meu mais precioso tesouro. E ela me olhou, e havia amor em seus olhos, havia amor, mas um amor que me atravessava a alma, que ia além de mim, seu pai, e se espalhava pelas árvores, pelo vento , pelo chão. Um amor que jamais seria só meu, que se expandia como o vento, como a água em sua corrida para o mar. Ah, como fui tolo afastando-a assim do mundo, da vida, dos prazeres reservados aos jovens. Sim, fui tolo, mas ainda haveria conserto, eu poderia mostrar-lhe o mundo, permitir que ela escolhesse um marido , que cumprisse seu destino de mulher. Me contentaria com a ternura destinada a um velho pai, mas só para mim, não esse amor difuso que eu não consigo suportar, esse amor por todos de que o tal Deus morto pregava. Ela me pediu uma fonte, um banhado, eu achei que estava curada. Sairia de sua banheira perfumada, mais bela do que nunca, não mais a menina, mas uma mulher. E agradeceria a mim, seu pai. Mas o que fez a louca? Gravou no mármore branco aquele símbolo de morte, destruiu as estátuas dos deuses, fez abrir uma janela, mais uma janela, símbolo de uma absurda trindade. E aquele amor em seus olhos, insuportável amor. Eu a machuquei, a arrastei pelos cabelos, a humilhei. Se não era mais dono de seu amor, seria dono de seu ódio. A raiva a curaria desse amor obsceno.
O medo a faria voltar para mim, não seria a primeira vez que eu conseguiria dominar alguém pela força. Ela voltaria a ser minha. Mas seu olhar não mudou, seu amor não mudou. Já não era a minha filha, pertencia ao seu Deus. E como ele haveria de sofrer.
E morrer. Mas não morria, não vergava, não cedia, não havia dor capaz de apagar de seus olhos o amor do tal Deus. E seu corpo sempre puro, seu olhar sempre radioso. Cabia a mim, seu pai acabar com isso. Uma ofensa a todos os deuses, uma abominação. Sim, morreria pela minha espada a criatura, e os deuses me perdoariam , não seria mais motivo de riso e chacota dos meus pares, muito menos dessa gente ignorante e crédula.
E eu a levei para a montanha, ignorei suas súplicas, pela minha alma, ela dizia, não por ela. Encostei minha espada em sua pele macia e branca. E não foi o raio, foram seus olhos, seu olhar de amor por mim que me fez cair fulminado.

(incluído na peça O Raio e a Flor de Cerejeira de Nadia Burda sobre a vida de Santa Bárbara. O monólogo de Dióscoro foi uma pequena contribuição minha para o texto da peça)

2 Comments:

Anonymous Nádia said...

Não foi uma pequena contribuição!
Foi construção de personagem
Foram horas de discussão
Foi incrível....

9:52 PM  
Blogger Ricardo Almeida said...

Muito bom! Perfeito!
Adoraria ler o roteiro, assistir a peça e ouvir a rádio-novela, mas duvido que qualquer adaptação de seu texto consiga dar conta de toda a dimensão desse pai que você criou.
Os deuses te saúdam!
bjs

1:18 PM  

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